quarta-feira, 30 de março de 2011

De Bernard Shaw

"A vida é uma pedra de amolar; ela vos desgasta ou afia, conforme o metal de que sois feitos."

Círculo Vicioso -- de Machado de Assis


Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:

"Quem me dera que eu fosse aquela loura estrela

Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!"

Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:


"Pudesse eu copiar-te o transparente lume,

Que, da grega coluna à gótica janela,

Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!"

Mas a lua, fitando o sol com azedume:


"Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela

Claridade imortal, que toda a luz resume!”

Mas o sol, inclinando a rútila capela:


Pesa-me esta brilhante auréola de nume...

Enfara-me esta luz e desmedida umbela...

Por que não nasci eu um simples vaga-lume?"

domingo, 27 de março de 2011

Flagrante do domingo (III)


Foto: Arriete Vilela

Flagrante do domingo (II)


Foto: Arriete Vilela

Flagrante do domingo (I)


Foto: Arriete Vilela

Parafraseando Mário Quintana


A leitura traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.

Enviado por Edna Lopes


Certamente, quem escreve tem na ponta da língua o modo como se iniciou no mundo das letras, como leitor e como escritor. O fato é que há sempre o que aprender, o que melhorar, seja como leitor que lê o mundo e a palavra ou como escritor, em forma e conteúdo.

Nesse livro, de maneira leve e delicada, o autor nos conta numa “ficção autobiográfica” da infância como foi aprendendo a ser escritor. Um menino apaixonado por livros, um escritor apaixonado por livros.

O livro é classificado como infantojuvenil, mas boa leitura não tem idade ou classificação. As dicas são valiosas para quem, como eu, brinca de escrever, ou para qualquer escritor/a mais tarimbado/a, que se preocupa em escrever com clareza e alguma emoção.

Da vez que ouvi Scliar numa dessas Bienais da vida, guardo a firmeza da palavra, o encantamento com que falava das leituras que fizera ao longo da vida, a delicadeza poética como demonstrava observar o cotidiano.

Por diversas vezes “pesquei” da Folha online crônicas suas, inspiradas em notícias do jornal, para abrir reuniões de trabalho, aulas, seminários de formação de educadores. Nos elementos do cotidiano, provocações, reflexões... Nenhum sentimento banalizado, tudo profundamente humano, real, poético.

Dias antes de sua morte, reli Memórias de um aprendiz de escritor e sugeri que Vinícius, meu adolescente tirado a filósofo, o lesse...

- Não pretendo ser escritor. Respondeu.

- Nunca se sabe. Respondi...

Um carinho imenso por cada lembrança de leitura, cada pensamento articulado. Fisicamente não está mais entre nós mas sua obra estará.

Eternamente, Moacyr.


http://recantodasletras.uol.com.br/resenhasdelivros/2871687

O impostor profissional -- Josélia Aguiar


Não é só João Gilberto que tem um (suposto?) impostor no Facebook capaz de convencer até os amigos reais.

Escritores de diversos países têm sido representados no Facebook pelo mesmo embusteiro: Tommaso Debenedetti, 42 anos, professor de italiano e história do ensino médio.

Sua vítima mais recente é Vargas Llosa. Depois que intelectuais kirchneristas pediram que Llosa fosse "desconvidado" da Feira do Livro de Buenos Aires, o escritor peruano teve de desmentir que tivesse respondido aos argentinos por meio de seu perfil no Facebook. “Jamais tive página no Facebook e jamais terei”, explicou Llosa. Antes, vários veículos acreditaram no impostor.

Debenedetti não encarna apenas Llosa no mundo virtual. Entre os autores "homenageados" - "prejudicados" talvez seja a melhor palavra, já que ele tenta se fazer passar pelo autor, e não apenas atua como fã - , encontram-se Umberto Eco, Philip Roth, Andrea Camilleri.

A história de imposturas de Debenedetti é antiga: durante uma década, ele publicou na imprensa italiana entrevistas falsas com grandes autores internacionais. Foi descoberto por Roth, a quem entrevistou “falsamente” cinco vezes.

Li a história no "El País" de hoje.


(Painel das Letras - Folha de São Paulo)

sábado, 26 de março de 2011

A flor e o espinho - de Nelson Cavaquinho


Tire o seu sorriso do caminho

Que eu quero passar com a minha dor

Hoje pra você eu sou espinho

Espinho não machuca a flor

Eu só errei quando juntei minha alma à sua

O sol não pode viver perto da lua...

(...)


(Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Alcides Caminha)
Foto: Rose Dias

sexta-feira, 25 de março de 2011


De Balzac

"O amor é a única paixão que não admite nem passado nem futuro."

FANTASIA E AVESSO - de Arriete Vilela


A farpa na alma, amor. Se consigo tirá-la, posso tornar este momento intuitivo e mágico. No entanto, agora, a palavra é um instante inabitável e eu flutuo num enorme vazio, desenraizada e leve. A palavra, agora, não faz redemoinho no oco da fantasia, e eu estou absolutamente quieta. Abraça-me, pois. Abraça-me, e com força, que a minha alma quer atravessar-te a pele. O meu silêncio agora não te cabe, amor, mas é um abandono passageiro. Tu sabes que os meus avessos têm muitas farpas, e tu próprio já me tiraste algumas delas. Permite-me estar sossegada e muda, esvaziada de palavras, esvaziada sobretudo de mim mesma, para que eu te ame com mais intensidade. A meada agora não tem fio; parece-me que brinco com um carretel nu a rolar, de modo irreversível, por entre folhas secas feito biscoito novinho barulhando nos dentes. Um distraimento. E quero apenas que me olhes docemente com esses teus olhos dourados, molhados de mar, cervejados de alegria. Sei que és a minha prioridade de vida e, diante de ti, não tenho passado e nada espero do futuro. Gosto quando te roças em mim, ave noturna intuitiva e audaz, cega de paixão, cujo voo traça os contornos da minha alma. Nós nos tocamos com um silêncio macio feito uma velha coberta de algodãozinho. Um silêncio puído, mas inteiramente livre. Um silêncio, como a palavra: gratuito. Um silêncio que abstrai o meu sentido comum e me devolve ao vazio, isto é, ao despojamento. Sou, pois, uma nova possibilidade, sempre; uma dimensão clandestina, banida do teu cotidiano doméstico, mas essencial à alegria que imprimes às outras dimensões da tua vida. Eu gosto do silêncio, amor, porque a palavra às vezes é apenas um ladrilho em cuja borda quebrada eu me firo constantemente. A palavra me seduz, é corpo bonito dançando sobre a minha pele de pelos eriçados de paixão. A palavra atravessa os meus desejos e fica feito beijo manchado na tua boca. A palavra me instiga a fantasia e faz dos meus avessos um fio de água fria que abre covas no bosque humoso que é o coração. Mas estou sempre em duelo com a palavra - por isso agora, amor, deixa-me estar quieta à sombra da eternidade. Afasta de mim os sustos que vêm no voo rápido das aves de rapina. Protege-me, amor, com o teu abraço desértico. A palavra me machuca, é areia fina caindo devagar na pétala que sonha ser lua. A palavra, amor, é mais poderosa que a minha fantasia e mais cruel que os meus avessos. Tento prendê-la com o fio da meada que me vem desde a infância, mas às vezes caio no sulco pegajoso da poesia e sou, então, uma fonte cega e labiríntica. Por isso prefiro o silêncio. Não é escudo, é carícia. O silêncio é macio feito coberta de algodãozinho. Quieta e muda, despojada de palavras, sou uma ternura vadia e solitária que roça as asas da ave noturna. Sou remanso, amor, sou flauta doce. E te amo com a luxúria das estrelas que milenarmente enfeitam as noites. Em silêncio beijo os teus olhos e em silêncio adormeço à sombra do teu peito. No silêncio entre o meu corpo e o teu, fixo a tua alma na eternidade da minha alma, porque quero que sejas sempre um surreal poema de trigo e de luz...
(Texto VIII - In: FANTASIA E AVESSO)
Foto: Arriete Vilela

quarta-feira, 23 de março de 2011

De Guimarães Rosa

"O amor? Pássaro que põe ovos de ferro."

Poema 39 -- de Arriete Vilela


Não sei onde pôr as minhas fragilidades.


Deixo-as à mostra, à vista de todos?


Camuflo-as sob as folhas que se decompõem

e fertilizam a terra da poesia?


Colo-as aos olhos, para que sejam o modo

como terei a comoção dos outros?


Não sei onde pôr as minhas fragilidades.


Deito-me ao colo delas

e apenas observo, a distância, as banalidades

que me doem?


Finco-as mais e mais no peito

e aguardo,condescendente, o desmanche das naus

que navegam em mim?


Finjo serem elas apenas casuais

e apresso-me na travessia das linguagens

que já não revelam as alegorias do luar?


Não sei onde pôr as minhas fragilidades.


Talvez nas tensões, talvez nas rupturas.

Talvez nas emoções, talvez nos descasos.

Talvez no humor, talvez nos dentes trincados.

Talvez na negligência, talvez nos amanhãs.

Talvez nos espinhos da vida, talvez nos meus semelhantes.


Não sei onde pôr as minhas fragilidades,

essas cirandas dançadas à beira dos meus abismos,

à margem de todos os amores

insustentáveis / insubstituíveis.


(Palavras em Travessia - In: Obra Poética Reunida)

Foto: Arriete Vilela

segunda-feira, 21 de março de 2011

Texto de Arriete Vilela


ALMA ENRODILHADA, ALMA RENDILHADA


Na infância, eu gostava de observar a avó fazendo renda na almofada de bilros. Ela parecia alhear-se de tudo o mais: concentrava-se unicamente no prazeroso trabalho de transfor­mar a linha em delicada renda. Os meus olhos de menina miúda não conseguiam acompanhar o movimento ligeiro e preciso das mãos da avó. E aquilo me fascinava. Os "cachimbinhos sem furo", trançados de modo amoroso e eficiente, pareciam pequeninos operários cantantes. Sim, cantantes. Iam batendo uns nos outros, animados, e, à fresca da tarde, no oitão da casa, com as pitangueiras cheiinhas de folhas novas, aquele som era alegre e ritmado como uma canção.

Aliás, tudo me fascinava quando eu via a avó - que em moça teve corpo de leves requebros e doce sensualidade - fazer renda com os bilros. Um dia eu falei: "Avó, quando eu crescer, também quero fazer renda, mas não é de linha, não, é de papel". A avó, naturalmente, estranhou e me mandou pegar da tabuada e estudar números.

Não escolhi números para a minha vida. Escolhi a poesia. E quando escrevo, alheio-me, à maneira da avó, de tudo o mais. Concentro-me unicamente no prazeroso (e difícil) trabalho de transformar a minha alma enrodilhada numa alma rendilhada.

A avó, sem querer, inscreveu-se em mim como o primeiro ponto da renda que, sei, ela continuaria com a delicadeza das almas silenciosamente sofredoras. Mas a vida, com suas rasteiras imprevisíveis, tem tentado fazer de mim uma alma enrodilhada, emaranhada em silêncios ressentidos e em escolhas afetivas equivocadas.

A literatura - renda em papel - é a minha trincheira de resistência. A vida me dói? Escrevo. A paixão amorosa me privile­gia e me desassossega? Escrevo. A morte mostra a cara quando leva algum amigo? Escrevo. Alguém me atraiçoa, negando-me a inteireza do afeto? Escrevo. A minha alma amanhece com a sensação de desamparo, sabendo-se sem um colo acolhedor? Escrevo.

E, ao escrever, teço-me renda. Sou linha e sou bilro e sou almofada recheada com a folha da bananeira. Sou neta maravilha­da diante de uma avó no oitão da casa, à fresca da tarde, espiando as folhinhas novas da pitangueira, mas sou, também, avó seduzi­da pelos risos infantis que, hoje, enchem a minha casa e o meu coração.

Escrevo, escrevo, escrevo. Apaixonadamente. Com a alegria e com as contradições de uma alma que nasceu poética, que sofreu muitos reveses e que insiste em não ser enrodilhada, mas rendilhada...
(In: Artesanias da Palavra)

sexta-feira, 18 de março de 2011

De Vladimir Maiakovski


Deus, que será de ti quando eu morrer?

Eu sou teu cântaro (e se me romper?)

A tua água (e se me corromper?)

Sou teu agasalho, sou teu afazer.

Vai comigo o significado teu.

quinta-feira, 17 de março de 2011

A fotografia, como a poesia, serve para ilustrar o real e ajudar as pessoas a compreendê-lo.

segunda-feira, 14 de março de 2011

14 de março:

DIA DA POESIA

De Manoel de Barros

"Poesia é voar fora da asa."

Procura da Poesia -- Carlos Drummond de Andrade


Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

(...)

Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.

Espera que cada um se realize e consuma

com seu poder de palavra

e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada

no espaço.


Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?


Repara:

ermas de melodia e conceito

elas se refugiaram na noite, as palavras.

Ainda úmidas e impregnadas de sono,

rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

domingo, 13 de março de 2011

De René Chateaubriand (1768-1848)


"O escritor original não é aquele que não imita os outros, mas aquele que não pode ser imitado por ninguém."

De Anna Akhmátova


"Aprendi a viver com simplicidade, com juízo, a olhar o céu, a fazer minhas orações, a passear sozinha até a noite, até ter esgotado esta angústia inútil."

De Oscar Wilde

"A única maneira de se livrar de uma tentação é render-se a ela."

Sobre Charles Dickens


"Reza a lenda que Dickens interpretava seus próprios personagens diante do espelho, fazendo mímicas para descobrir os gestos e feições de cada um. Em seguida, voltava para a escrivaninha e os descrevia conforme os havia retratado no espelho."


(Daniel Puglia - in: Revista EntreLivros)

Poema 37 -- Arriete Vilela


Aposto na atemporalidade
desse amor - Penélope o teceu
também para mim.

E eu o tenho destecido
para renová-lo:

a cada nova feição,
degusto-o como a um bom vinho,
até a última gota dos signos cotidianos,
fascinantemente dispersos
em leves e míticas traições.

Aposto outra vez
nesse amor tão improvável
que, agora, só tem a graça da ironia:
é tranquilo porque virtual.

(Palavras em Travessia - In: Obra Poética Reunida)

De Jorge Luis Borges


A verdade é que todos os escritores criam seus precursores."

quinta-feira, 10 de março de 2011

Aniversário -- Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu era feliz e ninguém estava morto.

Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,

E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,

De ser inteligente para entre a família,

E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.

(...)
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!

Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,

Por uma viagem metafísica e carnal,

Com uma dualidade de eu para mim...

Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

(...)

Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

De Franz Kafka


"Tudo que não é literatura me aborrece."

De James Joyce


"É difícil conhecer outra pessoa além de nós mesmos."

quarta-feira, 9 de março de 2011

Sierva Maria de Todos los Ángeles? Não, não...


Mas me lembrei da menina Sierva Maria de Todos los Ángeles, com sua cabeleira de cobre de 22 metros e 11 centímetros, em DO AMOR E OUTROS DEMÔNIOS, de Gabriel García Márquez.
Foto: Arriete Vilela

De Mario Vargas Llosa


"A literatura não diz nada aos seres humanos satisfeitos com seu destino, de todo contentes com o modo como vivem a vida. A literatura é alimento dos espíritos indóceis e propagadora da inconformidade, um refúgio para quem tem muito ou muito pouco na vida, onde é possível não ser infeliz, não se sentir incompleto, não ser frustrado nas próprias aspirações. Cavalgar junto ao esquálido Rocinante e a seu desregrado cavaleiro pelas terras da Mancha, percorrer os mares em busca da baleia branca com o capitão Ahab, tomar o arsênico com Emma Bovary ou transformar-se em inseto com Gregor Samsa é um modo astuto que inventamos para nos mitigar pelas ofensas e imposições desta vida injusta que nos obriga a sermos sempre os mesmos, enquanto gostaríamos de ser muitos, tantos quantos fossem necessários para satisfazer os desejos incandescentes de que somos possuídos."


("Em defesa do romance")

De Ricardo Reis (Heterônimo de Fernando Pessoa)

"Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo."

Elegia a uma pequena borboleta -- Cecília Meireles

Como chegavas do casulo,
— inacabada seda viva —
tuas antenas — fios soltos
da trama de que eras tecida,
e teus olhos, dois grãos da noite
de onde o teu mistério surgia,

como caíste sobre o mundo
inábil, na manhã tão clara,
sem mãe, sem guia, sem conselho,
e rolavas por uma escada
como papel, penugem, poeira,
com mais sonho e silêncio que asas,

minha mão tosca te agarrou
com uma dura, inocente culpa,
e é cinza de lua teu corpo,
meus dedos, sua sepultura.
Já desfeita e ainda palpitante,
expiras sem noção nenhuma.

Ó bordado do véu do dia,
transparente anêmona aérea!
não leves meu rosto contigo:
leva o pranto que te celebra,
no olho precário em que te acabas,
meu remorso ajoelhado leva!

Choro a tua forma violada,
miraculosa, alva, divina,
criatura de pólen, de aragem,
diáfana pétala da vida!
Choro ter pesado em teu corpo
que no estame não pesaria.

Choro esta humana insuficiência:
— a confusão dos nossos olhos
— o selvagem peso do gesto,
— cegueira — ignorância — remotos
instintos súbitos — violências
que o sonho e a graça prostram mortos.

Pudesse a etéreos paraísos
ascender teu leve fantasma,
e meu coração penitente
ser a rosa desabrochada
para servir-te mel e aroma,
por toda a eternidade escrava!

E as lágrimas que por ti choro
fossem o orvalho desses campos,
— os espelhos que refletissem
— voo e silêncio — os teus encantos,
com a ternura humilde e o remorso
dos meus desacertos humanos!

sábado, 5 de março de 2011

Alegria Resgatada -- Arriete Vilela


Ah, esses retornos à infância! Entretenimento e catarse. Caminhos que, dantes, se configuravam ásperos paralelepípedos, parecem-me, hoje, exatamente agora, feitos de relva à sombra dos cajueiros em flor. A imaginação recria a infância, revisita-a com jeitos amenos, reinventa-lhe os atalhos com flores silvestres — enfim: descobre-lhe as boas surpresas.
Porque a infância é sempre uma grande surpresa.
Um tempo mágico, com certeza. Quando a gente pensa que já disse tudo, lembranças aparentemente insignificantes vêm à tona e exigem corpo, texto; sobrevivem em nós durante décadas, até que, um dia, emergem vigorosas e cobram nitidez.

O carnaval, por exemplo. Eu nunca havia dado importância, nos meus escritos, aos carnavais da minha infância. Lembrava-me, apenas, das sacolinhas de filó cheias de confete e serpentina. Em Fantasia e Avesso, refiro-me a elas, mas — devo admitir - de um modo um tanto triste:


"Era um pouco antes do carnaval e eu dizia: vai vender todas essas sacolinhas? O pai calado. O vento dançava com as sacolinhas de filó dependuradas do teto da loja. Era bonito de se ver. Era já a fantasia. Era já o avesso. E o pai calado, trabalhando. Ausente de mim, ausente da fantasia, ausente do avesso. (...) Eu queria entreter o pai, distraí-lo na sua dor, torná-lo menos ausente, menos hostil. Eu queria também subir na escada, pendurar as sacolinhas, chegar perto dele, ser cúmplice dele, entendes, amor? Mas ele dizia: Desce já daí, sua peruazinha! O pai não entendia nada, nada. O pai não percebia que, naquele momento, ele socava irremediavelmente a minha alma, socava-a com a impiedade da sua recusa, com a sua ausência e o seu silêncio. "

Hoje, entretanto, o meu retorno à infância não deve ser triste. Chegam-me lembranças de movimento e de cores em casa: minha mãe, caprichosa e habilidosa na máquina de costura, virava as noites confeccionando fantasias e sacolinhas de filó, que seriam vendidas na loja de meu pai. Eu sempre ficava por ali, escutando a conversa animada das ajudantes e o barulho carnavalesco das máquinas de costura. Muitas vezes adormeci entre retalhos coloridos, sapatilhas, colares, metros e metros de tule, de cetim e de fitilhos, a mão a dez centímetros das continhas de vidro, das lantejoulas, dos paetês, dos frasquinhos com areia brilhante e purpurina, ansiosa por pegá-los, brincar com eles, mas contida pelo olhar atento e severo da mãe.

No domingo de carnaval, às cinco horas da tarde, havia o baile infantil na Sociedade Santa Cecília. A partir das quatro horas, despontavam crianças de todas as direções, rumo à Rua da Matriz. A pequena cidade parecia mais bela, com muito mais vida, às margens da lagoa Manguaba, por causa da alegre descontração das crianças, caprichosamente fantasiadas.
Lembro-me: a minha sacolinha de filó era um pouco maior do que as outras — uma pequena exigência minha, para que pudesse dispor de mais confete e de mais serpentina. Eu sentia um grande prazer em jogar, nas outras crianças, aqueles "pedacinhos coloridos de saudade". Gostava, igualmente, de amarrá-las com as serpentinas, fingindo um poder - ah, ilusão! - que logo se quebrava.
Lembro-me ainda: os garotos levavam lança-perfume e divertiam-se borrifando um pouco nas nossas costas. Aquela sensação de friozinho era agradável, e nós, as meninas, divertíamo-nos também, correndo pelo salão para dificultar a brincadeira dos meninos.

Num dos carnavais, minha mãe colocou um lança-perfume na minha sacolinha. Era dourado, cilíndrico, de metal, e me pareceu um objeto bonito. Sempre que o tirava da sacolinha de filó, sentia pena em gastar aquele líquido perfumado, pois, muitas vezes, desperdiçava-se o jato, tamanha era a ligeireza com que as crianças se desviavam do borrifo. Ora, num determinado momento, decidi que não iria gastar o meu lança-perfume assim inutilmente. Guardei-o na sacolinha; em casa, coloquei-o no fundo da gaveta da minha cômoda. Na quarta-feira de cinzas, porém, constatei que o lança-perfume, sem o alegre clima do carnaval, não tinha nenhum sentido. Então ele ficou lá, esquecido, até que, um dia, joguei-o no lixo, inútil, ressecado. E aprendi que contentamento deve ser usufruído no momento mesmo em que acontece...
Hoje, lembro-me especialmente do avô João Galego, homem bonito, de olhos tão azuis como as águas do Francês, nas tardes em que o amor poetiza o mar.
Meu avô tocava clarinete na orquestra da Sociedade Santa Cecília. Então, nos bailes infantis de domingo e terça-feira, eu sentia um imenso orgulho do avô, talentoso artista, incansavelmente dedicado à música. Muitas vezes parei no meio do salão, encantada, embevecida, observando o toque amoroso do avô naquelas lâminas metálicas: o som produzido pelas vibrações da mão do avô distinguia-se de qualquer outro som - pelo menos, aos meus ouvidos. Afinal, imaginava eu, o avô tocava exclusivamente para mim.

Descubro agora que teria muito a me entreter com as lembranças dos carnavais da minha infância. Um carnaval puxa outro, uma fantasia lembra outra. A lembrança proustiana do cheiro do lança-perfume desperta a saudade de uma infância que, afinal de contas, não foi tão triste como sempre acreditei ter sido...
(Tardios Afetos -- In: Contos Reunidos)
(Ilustração: portaldoprofessor.mec.gov.br)

terça-feira, 1 de março de 2011

De Novalis


"O amor é mudo; só a poesia o faz falar."

Foto: Arriete Vilela

Sugestão -- Cecília Meireles


Sede assim — qualquer coisa

serena, isenta, fiel.


Flor que se cumpre,

sem pergunta.


Onda que se esforça,

por exercício desinteressado.


Lua que envolve igualmente

os noivos abraçados

e os soldados já frios.


Também como este ar da noite:

sussurrante de silêncios,

cheio de nascimentos e pétalas.


Igual à pedra detida,

sustentando seu demorado destino.

E à nuvem, leve e bela,

vivendo de nunca chegar a ser.


À cigarra, queimando-se em música,

ao camelo que mastiga sua longa solidão,

ao pássaro que procura o fim do mundo,

ao boi que vai com inocência para a morte.


Sede assim qualquer coisa

serena, isenta, fiel.


Não como o resto dos homens.


(Mar Absoluto - In: Obra Poética)

A um jovem poeta -- Vinicius de Moraes


O almoço que tivemos outro dia, meu caro Jovem Poeta - e três poetas éramos nós em três idades da existência tão importantes como os 30, os 40 e os 50 -, deixou-me triste. Triste porque o seu descaminho, a sua angústia, a sua neura são sintomáticos de uma luta inglória. Você, que ainda é puro e sabe o quão fundamental é ela para a sua aventura de poeta, fica irado contra os outros, ao sentir que a sua presente agressividade é fruto de um complexo de culpa. É você, não os outros, quem está em crise. E se os outros também o estiverem, razão a mais para você afirmar-se em sua luta, que é a luta de todo poeta, para ajudá-lo a sair dela. Pois você não auxiliará ninguém, muito menos a si mesmo, se seu coração não estiver limpo de ressentimento e sua luta contra "o outro" não for constante. "O outro", não preciso dizer, é você próprio. É o súcubo que, todos, temos dentro de nós; o ser calhorda, comprável com a moeda da mentira e da lisonja, que de repente adota a gratuidade como norma, por isso que a paixão é mais insaciável que o infinito aberto em cima. E a paixão não se vende nunca.

Cada poeta é uma coisa em si, mas todos os poetas devem o mesmo à Poesia: a própria vida. Há, o poeta, que queimar-se e causar sempre mal-estar aos que não se queimam. Há que ser o grande ferido, o grande inconformado, o grande pródigo. Há que viver em pranto por dentro e por fora, de alegria ou de sofrimento, e nunca dizer "não" a ninguém, nem mesmo àqueles que optaram pelo não chorar. Há que também não ter o pejo do ridículo, da intriga ou da risota alheia. Quando Gide, ao ver Verlaine bêbado e maltratado, numa rua de Paris, por um grupo de jovens que o perseguiam e caçoavam com empurrões e doestos, contrariou voluntariamente o impulso de socorrê-lo, preferindo deixá-lo entregue a um destino que sabia já traçado - que grande página deixou de escrever sobre a covardia humana, sobre o mal da disponibilidade e a tristeza do egoísmo! Verlaine, o pobre Verlaine, talvez dentre os poetas o que mais amou e sofreu...

Você meu caro Jovem Poeta, que foi dotado de talento e de beleza, não tem o direito de negar-se ao seu martírio. Só ele pode tornar a sua poesia emocionante. Só ele pode salvá-lo do formalismo em que caem os que se recusam a estar sempre despertos. É preciso que todos vejam a luz que seu coração transverbera, mesmo coberto por bons panos. Não negue o seu olhar de poeta aos homens que precisam dele, mesmo tendo o pudor de confessá-lo. Abra a sua camisa e saia para o grande encontro!

(In: Obra Poética)