sábado, 5 de março de 2011

Alegria Resgatada -- Arriete Vilela


Ah, esses retornos à infância! Entretenimento e catarse. Caminhos que, dantes, se configuravam ásperos paralelepípedos, parecem-me, hoje, exatamente agora, feitos de relva à sombra dos cajueiros em flor. A imaginação recria a infância, revisita-a com jeitos amenos, reinventa-lhe os atalhos com flores silvestres — enfim: descobre-lhe as boas surpresas.
Porque a infância é sempre uma grande surpresa.
Um tempo mágico, com certeza. Quando a gente pensa que já disse tudo, lembranças aparentemente insignificantes vêm à tona e exigem corpo, texto; sobrevivem em nós durante décadas, até que, um dia, emergem vigorosas e cobram nitidez.

O carnaval, por exemplo. Eu nunca havia dado importância, nos meus escritos, aos carnavais da minha infância. Lembrava-me, apenas, das sacolinhas de filó cheias de confete e serpentina. Em Fantasia e Avesso, refiro-me a elas, mas — devo admitir - de um modo um tanto triste:


"Era um pouco antes do carnaval e eu dizia: vai vender todas essas sacolinhas? O pai calado. O vento dançava com as sacolinhas de filó dependuradas do teto da loja. Era bonito de se ver. Era já a fantasia. Era já o avesso. E o pai calado, trabalhando. Ausente de mim, ausente da fantasia, ausente do avesso. (...) Eu queria entreter o pai, distraí-lo na sua dor, torná-lo menos ausente, menos hostil. Eu queria também subir na escada, pendurar as sacolinhas, chegar perto dele, ser cúmplice dele, entendes, amor? Mas ele dizia: Desce já daí, sua peruazinha! O pai não entendia nada, nada. O pai não percebia que, naquele momento, ele socava irremediavelmente a minha alma, socava-a com a impiedade da sua recusa, com a sua ausência e o seu silêncio. "

Hoje, entretanto, o meu retorno à infância não deve ser triste. Chegam-me lembranças de movimento e de cores em casa: minha mãe, caprichosa e habilidosa na máquina de costura, virava as noites confeccionando fantasias e sacolinhas de filó, que seriam vendidas na loja de meu pai. Eu sempre ficava por ali, escutando a conversa animada das ajudantes e o barulho carnavalesco das máquinas de costura. Muitas vezes adormeci entre retalhos coloridos, sapatilhas, colares, metros e metros de tule, de cetim e de fitilhos, a mão a dez centímetros das continhas de vidro, das lantejoulas, dos paetês, dos frasquinhos com areia brilhante e purpurina, ansiosa por pegá-los, brincar com eles, mas contida pelo olhar atento e severo da mãe.

No domingo de carnaval, às cinco horas da tarde, havia o baile infantil na Sociedade Santa Cecília. A partir das quatro horas, despontavam crianças de todas as direções, rumo à Rua da Matriz. A pequena cidade parecia mais bela, com muito mais vida, às margens da lagoa Manguaba, por causa da alegre descontração das crianças, caprichosamente fantasiadas.
Lembro-me: a minha sacolinha de filó era um pouco maior do que as outras — uma pequena exigência minha, para que pudesse dispor de mais confete e de mais serpentina. Eu sentia um grande prazer em jogar, nas outras crianças, aqueles "pedacinhos coloridos de saudade". Gostava, igualmente, de amarrá-las com as serpentinas, fingindo um poder - ah, ilusão! - que logo se quebrava.
Lembro-me ainda: os garotos levavam lança-perfume e divertiam-se borrifando um pouco nas nossas costas. Aquela sensação de friozinho era agradável, e nós, as meninas, divertíamo-nos também, correndo pelo salão para dificultar a brincadeira dos meninos.

Num dos carnavais, minha mãe colocou um lança-perfume na minha sacolinha. Era dourado, cilíndrico, de metal, e me pareceu um objeto bonito. Sempre que o tirava da sacolinha de filó, sentia pena em gastar aquele líquido perfumado, pois, muitas vezes, desperdiçava-se o jato, tamanha era a ligeireza com que as crianças se desviavam do borrifo. Ora, num determinado momento, decidi que não iria gastar o meu lança-perfume assim inutilmente. Guardei-o na sacolinha; em casa, coloquei-o no fundo da gaveta da minha cômoda. Na quarta-feira de cinzas, porém, constatei que o lança-perfume, sem o alegre clima do carnaval, não tinha nenhum sentido. Então ele ficou lá, esquecido, até que, um dia, joguei-o no lixo, inútil, ressecado. E aprendi que contentamento deve ser usufruído no momento mesmo em que acontece...
Hoje, lembro-me especialmente do avô João Galego, homem bonito, de olhos tão azuis como as águas do Francês, nas tardes em que o amor poetiza o mar.
Meu avô tocava clarinete na orquestra da Sociedade Santa Cecília. Então, nos bailes infantis de domingo e terça-feira, eu sentia um imenso orgulho do avô, talentoso artista, incansavelmente dedicado à música. Muitas vezes parei no meio do salão, encantada, embevecida, observando o toque amoroso do avô naquelas lâminas metálicas: o som produzido pelas vibrações da mão do avô distinguia-se de qualquer outro som - pelo menos, aos meus ouvidos. Afinal, imaginava eu, o avô tocava exclusivamente para mim.

Descubro agora que teria muito a me entreter com as lembranças dos carnavais da minha infância. Um carnaval puxa outro, uma fantasia lembra outra. A lembrança proustiana do cheiro do lança-perfume desperta a saudade de uma infância que, afinal de contas, não foi tão triste como sempre acreditei ter sido...
(Tardios Afetos -- In: Contos Reunidos)
(Ilustração: portaldoprofessor.mec.gov.br)

Nenhum comentário:

Postar um comentário