sexta-feira, 25 de março de 2011

FANTASIA E AVESSO - de Arriete Vilela


A farpa na alma, amor. Se consigo tirá-la, posso tornar este momento intuitivo e mágico. No entanto, agora, a palavra é um instante inabitável e eu flutuo num enorme vazio, desenraizada e leve. A palavra, agora, não faz redemoinho no oco da fantasia, e eu estou absolutamente quieta. Abraça-me, pois. Abraça-me, e com força, que a minha alma quer atravessar-te a pele. O meu silêncio agora não te cabe, amor, mas é um abandono passageiro. Tu sabes que os meus avessos têm muitas farpas, e tu próprio já me tiraste algumas delas. Permite-me estar sossegada e muda, esvaziada de palavras, esvaziada sobretudo de mim mesma, para que eu te ame com mais intensidade. A meada agora não tem fio; parece-me que brinco com um carretel nu a rolar, de modo irreversível, por entre folhas secas feito biscoito novinho barulhando nos dentes. Um distraimento. E quero apenas que me olhes docemente com esses teus olhos dourados, molhados de mar, cervejados de alegria. Sei que és a minha prioridade de vida e, diante de ti, não tenho passado e nada espero do futuro. Gosto quando te roças em mim, ave noturna intuitiva e audaz, cega de paixão, cujo voo traça os contornos da minha alma. Nós nos tocamos com um silêncio macio feito uma velha coberta de algodãozinho. Um silêncio puído, mas inteiramente livre. Um silêncio, como a palavra: gratuito. Um silêncio que abstrai o meu sentido comum e me devolve ao vazio, isto é, ao despojamento. Sou, pois, uma nova possibilidade, sempre; uma dimensão clandestina, banida do teu cotidiano doméstico, mas essencial à alegria que imprimes às outras dimensões da tua vida. Eu gosto do silêncio, amor, porque a palavra às vezes é apenas um ladrilho em cuja borda quebrada eu me firo constantemente. A palavra me seduz, é corpo bonito dançando sobre a minha pele de pelos eriçados de paixão. A palavra atravessa os meus desejos e fica feito beijo manchado na tua boca. A palavra me instiga a fantasia e faz dos meus avessos um fio de água fria que abre covas no bosque humoso que é o coração. Mas estou sempre em duelo com a palavra - por isso agora, amor, deixa-me estar quieta à sombra da eternidade. Afasta de mim os sustos que vêm no voo rápido das aves de rapina. Protege-me, amor, com o teu abraço desértico. A palavra me machuca, é areia fina caindo devagar na pétala que sonha ser lua. A palavra, amor, é mais poderosa que a minha fantasia e mais cruel que os meus avessos. Tento prendê-la com o fio da meada que me vem desde a infância, mas às vezes caio no sulco pegajoso da poesia e sou, então, uma fonte cega e labiríntica. Por isso prefiro o silêncio. Não é escudo, é carícia. O silêncio é macio feito coberta de algodãozinho. Quieta e muda, despojada de palavras, sou uma ternura vadia e solitária que roça as asas da ave noturna. Sou remanso, amor, sou flauta doce. E te amo com a luxúria das estrelas que milenarmente enfeitam as noites. Em silêncio beijo os teus olhos e em silêncio adormeço à sombra do teu peito. No silêncio entre o meu corpo e o teu, fixo a tua alma na eternidade da minha alma, porque quero que sejas sempre um surreal poema de trigo e de luz...
(Texto VIII - In: FANTASIA E AVESSO)
Foto: Arriete Vilela

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